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Dicas culturais da revista piauí



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A questão climática tornou-se um tema prioritário em várias áreas do saber. Nessa esteira de mobilização, a pergunta nas artes visuais é como os artistas podem contribuir para ampliar a reflexão sobre o tema. Uma das respostas está na exposição George Love: além do tempo, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo até 1º de setembro.

Filho de uma escritora, Love (1937-95) nasceu em Charlotte, na Carolina do Norte, no sudeste dos Estados Unidos, região marcada pelo forte racismo. Fez seus estudos em Nova York, onde iniciou sua produção artística em fotografia. Em 1966, ele se mudou para o Brasil, onde viveu por mais de vinte anos. Em trabalhos na Amazônia, Love teve como parceira de trabalho a fotógrafa Claudia Andujar, sua mulher. Mas nunca se tornou um nome muito conhecido do público brasileiro. Sempre foi tido como um fotógrafo de fotógrafos, ou seja, conhecido apenas por artistas e especialistas, o que não reduz sua importância, visto a influência que exerceu em seus contemporâneos.

A mostra no MAM reúne mais de quinhentas fotografias de Love, permitindo entender com clareza como ele construiu seu universo visual e como a natureza é importante para seu trabalho. Dentre os vinte núcleos da exposição, o mais fascinante é “Amazônia”, com fotos feitas na floresta em 1971 para uma edição especial da revista Realidade, da editora Abril. As vistas aéreas de paisagens – campo no qual Love ficou conhecido – dão conta da monumentalidade da área vegetal: também revelam a grandiosidade das águas dos rios, com seus movimentos turbulentos. 

A curadoria de Pedro Mendes da Rocha é bem-sucedida. O cinza que predomina nos módulos não torna a mostra sisuda – pelo contrário, dá vontade de explorar a exposição em detalhes. Rocha montou logo no começo da exposição um recorte, que simula uma polaroid a ser ocupada, sugerindo que os visitantes façam fotos ali. Não é um gesto pirotécnico ou “caça-clique”, como ocorre em outras exposições: o autorretrato era um gênero importante na produção de Love.

“Prima facie” significa à primeira vista. No contexto jurídico, a locução é utilizada para definir uma evidência que, se não for refutada, é suficiente para provar algo. Essa expressão dá nome ao monólogo de estreia da atriz Débora Falabella, que trata sobre como mulheres vítimas de estupro são vistas pelo sistema judicial. A peça está em cartaz até 30 de junho no Teatro Adolpho Bloch, no Rio de Janeiro. Em setembro, haverá uma temporada em São Paulo. 

Escrita pela dramaturga australiana Suzie Miller, Prima facie ganhou várias montagens ao redor do mundo. Essa é a primeira adaptação do texto no Brasil. Com direção de      Yara de Novaes, a peça conta a história de Tessa Ensler, uma jovem e bem-sucedida advogada que compara o seu trabalho ao de um taxista: precisa aceitar todas as corridas, não importa para onde. A verdade, ela diz, não é um problema dela, mas dos juízes e do corpo de jurados. Seu trabalho é tentar ganhar a causa, encontrar brechas no caso que garantam que seu cliente seja inocentado. Mesmo que ele seja um notório abusador sexual.

As coisas seguem assim na carreira ascendente de Tessa Ensler, até que ocorre uma virada de chave imprevista. A própria advogada sofre violência sexual de um colega de trabalho. Ela agora é a vítima. A advogada, então, passa a rever seu trabalho e a questionar o sistema judicial: ele é controlado por homens – e isso tende a favorecê-los.

Débora Falabela vai do entusiasmo à melancolia – e vive intensamente os sentimentos de Tessa Ensler durante uma hora e meia. A direção é potente, e a montagem necessária. Quando se sabe que uma em cada três mulheres são vítimas de violência sexual, Prima facie é uma excelente oportunidade para debater tanto esse tipo de agressão como a própria dominação masculina do sistema jurídico.

Os Possessos: aventuras com os livros russos e seus leitores –, firmou a americana (de origem turca) Elif Batuman como uma ensaísta primorosa, com uma voz que reúne um senso de humor debochado e uma curiosidade rara, impulsionada pelo rigor obsessivo com que conduz suas paixões intelectuais. Para Batuman, por exemplo, não bastou estudar russo na graduação em Harvard: ela foi morar na Rússia para aprimorar seu conhecimento do idioma e aprofundar a relação com os autores que amava. Dessa experiência resultou um doutorado e os ensaios de Os Possessos, livro publicado nos Estados Unidos em 2010 e publicado em Portugal em 2012 (não existe edição brasileira). Todos os ensaios brotam de uma mesma técnica central: a de extrair do tédio e das picuinhas do mundo acadêmico russófilo histórias cômicas e absurdas. 

Aqueles que acompanham a carreira de Batuman viram esse repertório se expandir nas reportagens e ensaios que passou a publicar na revista New Yorker.  Por trás desses textos pulsava uma consciência autoral que gerava curiosidade – e a esperança era de que Batuman viesse, em algum momento, a escrever um romance. 

Que esse romance fosse autobiográfico parecia inevitável. Em 2018, ela publicou A Idiota (Companhia das Letras), em que acompanha Selin, seu alter-ego, no primeiro ano de graduação em Harvard. Todas as marcas da voz ensaística de Batuman se manifestam no romance, mas a paixão narrada agora não é apenas intelectual: Selin se apaixona por Ivan, um aluno húngaro taciturno, estudante de matemática. A obsessão a leva não apenas a tentar aprender uma nova língua, como também a viajar para um povoado no interior da Hungria, onde dá aulas de inglês, enquanto aprende o húngaro. A trama, aparentemente modesta, gerou um romance de mais de quatrocentas páginas. A ternura e o humor de Batuman nos convencem de que esse número de páginas é absolutamente necessário para narrar uma história de amor, que não dispensa alguma indulgência e certa dramaticidade, porque assim são as paixões da juventude. 

O novo romance de Batuman, Ou-Ou, lançado nos Estados Unidos em 2022, chega às livrarias brasileiras no mês que vem. O livro dá prosseguimento à história de Selin, em seu segundo ano em Harvard e depois da paixão por Ivan, quando ela tenta, nem sempre com sucesso, viver mais livremente. O livro é também um calhamaço, com 416 páginas na edição brasileira (pela Companhia das Letras). Nesse ritmo de escrita, até que Selin se forme em Harvard,  Batuman terá escrito uma longa saga, capaz de rivalizar com a do norueguês Karl Ove Knausgård, autor de uma volumosa obra de autoficção. E a série seliniana ainda tem potencial para prosseguir com o doutorado da protagonista e mais além. Mas o livro vale a pena ser lido (e se o leitor não conhece o anterior, vale ler os dois na sequência). 

Com O idiota, o novo romance forma um díptico apaixonante sobre uma personagem feminina muito contemporânea, com suas hesitações e obsessões, uma figura romanesca que ao mesmo tempo homenageia e parodia as grandes heroínas da literatura do século XIX. 

P.S.: A piauí publicou alguns textos de Batuman, como um relato sobre a experiência ambivalente de usar um lenço na Turquia e uma reflexão controversa sobre como os clássicos literários russos expressaram as inclinações imperialistas de seu país.

Na edição de maio da piauí, o cineasta alemão Werner Herzog narra como ganhou uma mochila de couro do escritor inglês Bruce Chatwin, famoso por seus relatos de viagens. O texto é um capítulo de Cada um por si e Deus contra todos:memórias, livro de Herzog que será lançado no Brasil em junho pela Todavia. Herzog e Chatwin se conheceram por causa de Cobra Verde, uma adaptação cinematográfica que o diretor alemão fez de O vice-rei de Uidá, romance do escritor inglês sobre um bandido brasileiro que se torna o maior traficante de escravos da África Ocidental. 

Quando se encontraram pela primeira vez, no aeroporto de Melbourne, Chatwin levava a mochila nas costas, e a conexão entre os dois foi imediata e verborrágica. Herzog reconstrói essa relação ao longo dos anos, das filmagens de Cobra Verde ao encontro final no leito de morte de Chatwin, que faleceu em 1989 após uma infecção fúngica contraída em decorrência do vírus HIV. 

A mochila é o totem perfeito para unir dois artistas que, cada um na sua área, fizeram do peripatetismo uma espécie de religião. “[...] não éramos mochileiros que, com barraca, saco de dormir e utensílios para cozinhar, carregavam uma casa nas costas, mas duas pessoas que percorriam longas distâncias quase sem bagagem [...] No caso de Bruce, deve-se acrescentar a sua profunda compreensão das culturas nômades, combinada com o seu entendimento de que todos os problemas da humanidade tinham a ver com o abandono da vida nômade.” Herzog escreve: “Talvez eu fosse o único com quem Bruce podia se entender facilmente sobre a sacralidade do caminhar.”

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Enviado por Revista Piauí

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